Poder para o povo - Centenário de Nelson Mandela
Mandela faleceu em 2013, aos 95 anos, com uma longa trajetória que o tornou um símbolo global de resistência e superação
Publicado: 18 Julho, 2018 - 14h35 | Última modificação: 18 Julho, 2018 - 15h05
Escrito por: Júlia Dolce
O mundo celebra nesta quarta-feira (18), o aniversário póstumo de 100 anos de uma de suas maiores lideranças políticas: o advogado, guerrilheiro e presidente da África do Sul (1994-1999) Nelson Mandela. Diferentemente de muitas personalidades às quais atribuímos um centenário distante de seu tempo de vida, Mandela faleceu recentemente, em 2013, aos 95 anos, com uma longa trajetória que o tornou um símbolo global de resistência e superação - passou 27 anos na prisão.
Ao longo de sua vida dedicou-se à construção de uma democracia, em oposição ao regime de segregação racial do apartheid, liderança que o tornou "Tata", ou “pai”, da moderna nação sul-africana, um apelido que diz tanto sobre sua simbologia quanto os outros nomes que lhe foram atribuídos ao longo da vida.
O batismo de nascimento de Mandela foi o nome de Rolihlala, que, em xhosa, um dos idiomas oficiais do país, significa "quem traz problemas", ou "agitador". Aos 16 anos, ao realizar um ritual de iniciação à vida adulta, recebeu o segundo nome de Dalibhunga, em português, "convocador de diálogo", ou "conciliador".
Proféticos, os nomes parecem antecipar a primeira e segunda parte da vida de Mandela, divididos pelos mais de 25 anos que passou sequestrado pelo regime do apartheid, na prisão. O nome Nelson, por sua vez, foi escolhido no colégio por uma professora, que dava nomes ocidentais para os alunos.
Por fim, o líder passou a ser chamado pelos sul-africanos de Madiba, nome do clã ao qual pertencia, o que exemplifica a ainda grande importância das etnias dentro do país.
Para Phakamille Hlubi Majola, porta-voz do Sindicato dos Metalúrgicos da África do Sul (Numsa), mesmo com muitas críticas ao governo de Mandela e principalmente às conciliações realizadas para que ele alcançasse o poder, sua figura ultrapassa o limite da desconstrução.
"Ele é conhecido pelo mundo como o lutador pela liberdade, especialmente quando você considera os sacrifícios pessoais que ele fez pela revolução. Ele sacrificou o contato com sua família, passou muitos anos preso e poderia ter sido condenado à morte. É algo que não se pode diminuir. Ele é uma pessoa muito importante na nossa história", afirmou.
Agitador
Mandela nasceu em 1918 na atual província sul-africana de Cabo Leste. Pouco tempo antes, em 1910, havia sido criada a então chamada União Sul-Africana, composta de diferentes colônias e do chamado Estado Livre de Orange. Mandela estudou em um colégio interno para negros durante a adolescência e em 1939 ingressou no curso de Direito da Universidade Fort Hare, primeira instituição de ensino superior da região que ministrava cursos para negros.
A instituição acabou se tornando uma incubadora de líderes revolucionários, como o arcebispo Desmond Tutu, ganhador do prêmio Nobel da Paz de 1984, e, lá, Mandela conheceu amigos que posteriormente o apresentaram ao Congresso Nacional Africano (CNA), fundado em 1912 por nacionalistas que faziam frente às leis segregacionistas. Com o passar dos anos, já casado e pai de três filhos, Mandela atuou como advogado, defendendo os negros das injustiças até que, em 1951, tornou-se presidente do CNA. Em seus discursos, a principal palavra de ordem gritada por Mandela era "Amandla!", que significa "poder", à qual a multidão respondia "Awethu!", (para o povo!).
Paralelamente à vitória da extrema-direita branca no governo do país, nos anos 1950, aumentou ainda mais a truculência do apartheid e Mandela se tornou um perseguido pela polícia. Na mesma década, o CNA recolheu demandas de voluntários em dezenas de vilas e cidades e construiu o manifesto "Freedom Charter" (Carta de liberdade), que trazia uma série de bandeiras políticas, entre as quais direitos humanos para todos e a distribuição de renda e terra, exemplificando os valores anticapitalistas do movimento.
"No Numsa e para qualquer um na esquerda, queremos lembrar o Mandela que lutava e defendia o Freedom Charter, que estava disposto a morrer pelo Freedom Charter. Quando você o lê, ele não vai tão longe como os comunistas insistiam, mas certamente era um documento básico e fundador para o começo de um socialismo na África do Sul. Isso porque falava de nacionalização de bancos, de recursos, da terra, de educação pública, da criação de uma vida de igualdade e liberdade para a classe trabalhadora e todos os africanos", afirmou Phakamille.
Prisão
Em abril de 1960, o CNA foi proibido e Mandela passou oficialmente para a clandestinidade. Na época, já havia se divorciado e casado com sua segunda esposa, a enfermeira, guerrilheira e companheira de luta Winifred Zanyiwe Madikizela, conhecida como Winnie Mandela, falecida em abril deste ano.
A partir dos anos 1960, após o Massacre de Sharpeville, ocasião em que a polícia assassinou 70 pessoas em um protesto contra uma lei que privava os negros do direito de ir e vir, o líder criou o braço armado do CNA, o "Lança de uma Nação". Então, Mandela iniciou uma série de viagens pela África, até ser encontrado pela polícia em seu esconderijo, em 11 de junho de 1963.
Mandela passou por um julgamento que mobilizou militantes em sua defesa em todo o mundo, e apesar de escapar de uma pena de morte, foi condenado à prisão perpétua. Sua prisão política foi denunciada no mundo inteiro principalmente por Winnie, que assumiu a liderança da CNA.
Nesse processo, mesmo cuidando das duas filhas que teve com Mandela, Winnie sofreu 24 prisões, ordens de restrição, banimento e proibições entre 1960 e 1985, e se tornou conhecida como Mama Winnie, uma das principais lideranças revolucionárias no mundo.
Aos 76 anos, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que começou sua carreira política como vereadora no Rio de Janeiro em 1982, conta como Mandela e Winnie mobilizaram a militância no Brasil: "Mandela é o homem que sofreu uma das maiores injustiças que já conhecemos na história, ficou todos aqueles anos preso injustamente sem ter cometido nenhum crime, seu único crime era pensar um país sem apartheid. Ele comoveu o mundo inteiro. Milhões de manifestações foram feitas e o Brasil teve um momento ímpar durante a Constituinte, defendendo o corte de relações com a África do Sul como um boicote por conta do apartheid. Mandela unificou a África, unificou a diáspora, o mundo, em torno da ideia da liberdade", afirmou.
Segundo Milton Barbosa, fundador do Movimento Negro Unificado (MNU), organização pioneira fundada em 1978, a CNA e a luta de Mandela tiveram grande impacto na organização da população negra brasileira. O MNU foi responsável por organizar a primeira visita de Mandela pelo Brasil, em 1991.
"Mandela e a luta da África do Sul foi uma inspiração para nosso movimento. Já antes do MNU nós fazíamos a denúncia do racismo na África do Sul. Mandela foi uma esperança internacional, a personalidade dele era muito forte, ele era muito preparado e fazia um trabalho importante de formação de base. A fala oficial de Mandela aqui pela primeira vez no país foi o MNU que organizou. Foi um momento com muita sensibilidade", lembrou.
Conciliador
Mandela ocupou a cela 466/64, de 2,5 metros por 2,1 metros na prisão da Ilha Robbem até 1982, tendo poucas visitas ao longo dos anos. Depois, foi transferido para uma prisão na Cidade do Cabo. Com a pressão internacional e a violência crescente dos movimentos em reação ao apartheid, o governo sul-africano optou por soltar Mandela, em 1990, em um processo de negociações com a CNA que envolveu uma série de concessões por parte do antes revolucionário Mandela.
Apesar de ter sido criticado por isso, Mandela foi finalmente solto e aclamado por uma multidão. "Quando me vi no meio da multidão, alcei o punho direito e estalou um clamor. Não havia podido fazer isso desde há 27 anos e me invadiu uma sensação de alegria e de força", declarou, posteriormente. A partir de então, ingressou na importante campanha presidencial, marcada pelo recebimento do Prêmio Nobel da Paz, em 1993. Em 1994, Mandela foi eleito, com 62% dos votos.
Para Sbu Zikode, presidente do movimento sul-africano por moradia Abahlali base Mjondolo, conhecido por ter fortes críticas aos governos da CNA, mesmo com as concessões de Mandela, sua libertação foi um momento de muita esperança.
"Nós achamos que Mandela foi um homem de palavra, de conciliação e de unidade, e ao redor disso ele criou nossa nação e a fase inicial de nossa democracia. Além disso, sua resistência e habilidades de negociação fizeram com que o país escapasse do que teria se tornado uma guerra civil. Naquela época, havia uma grande esperança e a nação inteira dizia em uma voz que tinha essa esperança, não apenas para a elite, mas para o povo", afirmou.
De acordo com Benedita da Silva, a eleição de Mandela foi um dos momentos mais emocionantes que vivenciou. Ela chegou a encontrar Mandela diversas vezes, enquanto estava preso, após sua libertação, e também no Brasil.
"Uma das coisas mais bonitas que eu vi foi o processo eleitoral, as pessoas nas condições mais precárias estavam lá com algo que ninguém pode roubar, que é a ideia, para vê-lo presidente da África do Sul. Para mim ele foi muito importante, não só na parte da política, mas enquanto etnia, raça. Saber como uma minoria branca poderia oprimir por tantas décadas uma maioria negra. E ele mexeu muito com a nossa cabeça negra, para a gente continuar lutando. Mandela nos impulsionou a fazer parte dos espaços de decisão que é a política, e como saber ocupar esse espaço, foi o que aprendemos com Mandela", relatou.
No entanto, as propostas de conciliação se intensificaram durante seus quatro anos no governo, e acabou tornando a imagem de Mandela bastante palatável para os países capitalistas. A transição para a democracia multirracial, a principal bandeira de seu governo, por exemplo, envolveu a criação da Comissão da Verdade e Reconciliação, encarregada de apurar, mas não punir, os fatos ocorridos durante o Apartheid.