Sobre a remoção de pessoas em situação de rua
Publicado: 16 Janeiro, 2018 - 12h05
Imagine que todas as suas coisas só caibam em uma sacola de pano. Talvez, com mais sorte, em um carrinho de supermercado. Imagine que você fica perambulando pela cidade com essa sacola ou carrinho, tentando achar um lugar para pernoitar, com um mínimo de segurança. Imagine que em suas andanças pela cidade, você cruza com transeuntes que, na maior parte das vezes, lhe tratam de maneira rude ou indiferente. Isso quando não olham com ar desconfiado, de reprovação ou até de desprezo.
Imagine que você tem que achar um lugar para defecar com um mínimo de privacidade, já que os poucos banheiros públicos gratuitos não ficam cotidianamente no seu circuito. E nesses há risco de violência, além de serem imundos. Banheiros públicos um pouco mais limpos, como o da rodoviária e o do mercado, são pagos, e você não tem nenhum vintém. E, pra chegar a eles todo dia você tem que caminhar quarteirões e mais quarteirões a pé, simplesmente pra defecar.
Imagine que por mais cansativo e suado que tenha sido seu dia, você vai dormir fedendo, sem tomar banho, porque não tem acesso a um chuveiro. Achar um chuveiro, ainda mais quente, no inverno, é uma saga. Isso quando não colocam água pra cair do teto embaixo das marquises, pra evitar que uma pessoa durma embaixo, como já fez aquele síndico de um prédio lá pela Independência.
Você dormindo e a água gelada começou a molhá-lo...
Imagine que, quando você dorme enrolado em papelão e algum cobertor caridoso que apareceu, ainda lhe perguntem porque você não vai pro albergue. Como se as vagas nos abrigos e albergues abundassem e nelas coubessem as mais de duas mil pessoas que vivem na rua. Ou como se fosse possível todo dia ter que fazer fila desde as 4 da tarde para conseguir uma vaga pra pernoitar até as 6 da manhã. Sim, porque a saída do albergue é a essa hora, faça chuva ou faça sol. Que diferença vai fazer na sua vida ter a garantia de um albergue cujo pernoite é de até 15 dias, pra depois ter que voltar pra rua? Um albergue que não lhe aceitará se você estiver doente porque pode contagiar os demais, com sintomas respiratórios, e precisando mais do que nunca de um teto? Um albergue sem lugar pro seu carrinho e seu cachorro?
Imagine, então, se você tiver a ousadia de querer tentar constituir uma família na rua. Ainda mais em uma cidade de um 1 milhão e 600 mil pessoas que tem um abrigo para 4 famílias. Sim, uma cidade que abriga uma família extremamente vulnerável cada 400 mil habitantes. A mesma cidade que tem um prefeito, uma polícia e uma chefia do departamento de limpeza urbana que autorizam sistematicamente o sequestro de sua sacola e as poucas tralhas que você tem no seu carrinho, recolhendo todos seus pertences como se fossem lixo.
Aquele documento que você, feliz, conseguiu refazer, foi pro lixo. Sua carteira de pré-natal? Também. A única foto que você guardava de sua mãe? Virou pó. As poucas roupas que você juntou? Nunca mais. O enxoval de sua bebê que ia nascer? Levaram enquanto você estava no hospital. Em remoções truculentas, que estraçalham sua lembrança de ser gente.
E ainda lhe tratam como sem-vergonha, drogado(a), vagabundo(a), como escória da sociedade. Porque pra julgar, as pessoas são muito rápidas. Mas pra escutar, olhar, ajudar, medem calculadamente seus atos. E, infelizmente muitas compartilham dessa perversão que celebra a falta de empatia como valor. Muitas se escondem e projetam em você suas sombras, estigmatizando-o e discriminando-o. Tripudiam justamente dos mais vulneráveis.
Uma sociedade conivente com práticas políticas que violam direitos básicos e retiram à força sua única sacola de roupa ou suas tralhas que cabem em um carrinho de mão é perversa. Uma sociedade que não enxerga o que há por trás de uma pessoa que perambula pelas ruas em busca de comida e abrigo, e apenas vê a sujeira do corpo e do entorno no qual essa pessoa vive, e que aplaude que as pessoas sejam varridas como lixo é totalmente perversa. Mas muitos de nós resistimos e lançamos outro olhar para uma realidade que pode chegar a qualquer um, domiciliado ou não: a do abandono, descuido, sujeira, tristeza, afogamento das mágoas em diversos tipos de substâncias, e diferentes tipos de mazelas que afligem e nos lembram cotidianamente de nossa condição humana.
Quando se vive todo dia correndo o risco de perder o pouco que se tem, e ainda sob a chancela do Estado, que assume o sequestro de pequenos bens materiais transformados em tralha e lixo, vivencia-se o pior da faceta humana: a injustiça legalizada, travestida de política, apregoada por aqueles que esquecem que, no fim das contas, todos viraremos pó.